Dom Nuno Álvares Pereira reuniu em si o conjunto de virtudes e predicados que fazem dele o arquétipo de qualquer cristão.
Frei Nuno de Santa Maria — seu nome religioso — é um personagem indivisível, e como tal deve ser visto.
Sobre este homem pousou, desde cedo, a mão da Providência. A sua vida foi uma sucessão contínua de prodígios e de lutas; e as suas ações, quer como condestável dos exércitos, quer como grande esmoler, foram aureoladas pela glória e humildade.
Corria o ano de 1360. Na festa de São João Batista, a 24 de junho, nasceu ele em Cernache do Bonjardim (140 quilômetros a norte de Lisboa), recebendo no Batismo o nome de Nuno. Descendia por ambos os lados da mais alta nobreza de Portugal.
Com tenra idade, como era hábito naquele tempo, foi viver entre cavaleiros e escudeiros. Os grandes feitos da cavalaria medieval povoavam os horizontes dos jovens da época. A Crônica do Condestável está repleta desses relatos.
Recebera em casa uma esmerada educação e sólida formação cristã. Ambas, aliadas à retidão de alma de Nuno, produziram efeitos duradouros que hoje nimbam a imagem do Condestável, cujo culto universal a Igreja Católica legitimará com a sua canonização.
Aos 13 anos acompanha o pai à Corte, que se achava em Santarém, uma vez que Henrique II de Castela invadira Portugal e marchava sobre Lisboa. Ele e o irmão Diogo recebem do Rei Dom Fernando de Portugal a ordem de colher informações sobre os invasores.
Desincumbem-se da tarefa com brilho. Dom Fernando toma Diogo para seu serviço, e Nuno, a quem foram dispensadas as cerimônias de praxe, é logo ali armado cavaleiro. Começa então a sua carreira de armas, e talvez seja esta a faceta mais incompreendida do Condestável para o homem contemporâneo, intoxicado que está pelos miasmas do pacifismo.
Nuno Álvares seguiu estritamente os princípios da cavalaria medieval — defender a fé, servir o rei e a honra das mulheres, estender a mão aos oprimidos. Fez sempre uso ponderado das armas, e nisso residia a razão da sua força. A procura da justiça era, para o santo Condestável, o fim último.
A crise que desembocará na batalha de Aljubarrota, na qual o gênio militar de Nuno Álvares resplandece, começa a emergir.
Entram em foco questões dinásticas delicadas, para além do fato de que, embora o Rei Dom Fernando tivesse obtido uma reconciliação de circunstância com o rei de Castela, contra quem guerreara, as desconfianças mútuas não se tinham dissipado e a situação ficara mal resolvida. Uma forte noção de identidade ia tomando conta de Portugal perante a ameaça castelhana, como se pode depreender dos escritos do cronista Fernão Lopes.
Paralelamente a esses acontecimentos emergira, em 1378, o tristemente célebre cisma do Ocidente. Em Portugal, o povo e o clero mantiveram-se fiéis ao Pontífice Romano, representante da legítima sucessão apostólica. Os castelhanos, no entanto, apoiaram o Papa de Avinhão, denominado “anti-papa”. Uma nova vertente, a religiosa, soma-se assim à crise. Na época, lutar contra os castelhanos torna-se a defesa do verdadeiro Papa contra os cismáticos.
Dom Nuno Álvares, pressentindo a ocupação próxima do trono de Portugal pelo rei de Castela, pôs-se a caminho de Lisboa acompanhado dos seus escudeiros. A morte em fins de 1383 do Conde Andeiro, amante de Dona Leonor Teles, precipita os acontecimentos.
Assume então o Mestre de Aviz, Dom João, Regedor e Defensor do Reino. Ao formar o seu Conselho de Governo, chama Nuno Álvares a tomar parte. Nas províncias, a insurreição vai ganhando terreno. Lisboa é cercada pelo rei de Castela. A sublevação estende-se a todo o Reino.
Dom João, Mestre de Aviz, envia o Condestável para defender as fronteiras no Alentejo. Com apenas 24 anos, derrota os invasores na batalha de Atoleiros, a 6 de abril de 1384. Ali agradece a Deus e à Santíssima Virgem por ajudarem no estabelecimento da justiça, “porque todo o vencimento é em Deus, e não nos homens”.
Em setembro de 1384 é levantado o cerco de Lisboa. Em Coimbra, as Cortes reúnem-se em abril-maio de 1385 para pôr cobro à questão dinástica. Dom João I é aclamado rei por unanimidade. Nuno Álvares é nomeado Condestável, chefe supremo do exército português. Contudo, o mais difícil ainda não chegara. O exército castelhano, agora bem apetrechado de homens e armas, vem tomar desforra.
Era domingo, 13 de agosto de 1385. O Condestável faz o reconhecimento do terreno, perto de Aljubarrota (20 quilômetros a sul da cidade de Leiria), ouve missa e comunga, depois retira-se em oração.
A batalha dá-se na véspera da festa da Assunção de Nossa Senhora, dia 14. Segundo os cronistas, do lado português estão, juntamente com os arqueiros ingleses, 7.700 homens; do lado castelhano são mais de 30.000. Ainda de acordo com os cronistas, mal despontara a aurora, iniciam-se os combates da batalha de Aljubarrota, que foi fulminante, tendo o exército castelhano deixado o solo juncado de mortos e feridos.
O Condestável respeitou as regras da cavalaria e permaneceu três dias à espera do exército invasor. Decorreram 26 anos até a assinatura do tratado de paz, em 1411. Ainda no rescaldo de Aljubarrota, travou-se a batalha de Valverde, nas proximidades de Mérida, em outubro de 1385, onde os castelhanos sofreram nova derrota.
Como penhor de gratidão pela vitória em Aljubarrota, Dom João I e o Condestável mandam construir um mosteiro em honra de Santa Maria da Vitória, mais conhecido como Mosteiro da Batalha, preciosa jóia da arquitetura gótica flamejante e um dos mais belos complexos monacais da Europa. .
Tendo entrado cedo na carreira das armas, logo após, aos 16 anos, Nuno Álvares contrai núpcias com Dona Leonor Alvim. Desse casamento, interrompido prematuramente pela morte da mulher, nasceu Dona Beatriz, que se casou com o 1º Duque de Bragança, filho bastardo de Dom João I. Pelo grande dote que deu à filha para o enlace matrimonial, é considerado o fundador da Sereníssima Casa de Bragança, cujos reis reinaram em Portugal de 1640 a 1910; e no Brasil independente, de 1822 a 1889.
A faceta de chefe militar do Condestável vai chegar até África, onde desembarca com os exércitos do rei na decisiva tomada de Ceuta, em 1415.
Entre os períodos de paz que se seguiram, Nuno Álvares dedica-se à edificação e restauro de igrejas e capelas por todo o Reino. Fidalgo de muitos haveres, vai distribuindo pelos seus próximos e pelos pobres os bens que acumulara nesta Terra.
Na sua longa vida de soldado, jamais permitiu que os seus comandados ofendessem ou profanassem templos cristãos, ultrajassem os sacramentos ou pilhassem os bens da Igreja. A sua retidão, em matéria muito sensível, era tão direita quanto o fio duma espada.
No entanto, sobre esta alma de eleição parecia ecoar a voz do Salmista (60, 2-3): “Escutai, ó Deus, o meu clamor, atendei a minha oração. […] Dos confins da Terra grito por Vós, com o meu coração desfalecido”. Consciente de que esta vida não é senão uma preparação para a outra, que é a das bem-aventuranças eternas, Nuno Álvares vai recolher-se no convento do Carmo, em 1423.
A procura da transcendência e do Absoluto, que é o nosso Deus Uno e Trino, encherá a sua alma sedenta até o último suspiro. Professará como irmão carmelita e se tornará o paladino da autêntica caridade cristã, distribuindo esmolas e ajudando os mais necessitados.
Em 1431, com 71 anos incompletos, entrega a sua alma ao Redentor. Na igreja do Carmo, sobre a campa rasa, lia-se em latim: “Aqui repousa aquele Nuno, Condestável, fundador da Casa de Bragança, chefe militar exímio, depois monge bem-aventurado, o qual, sendo vivo, desejou tanto o Reino do Céu que mereceu, depois da morte, viver eternamente na companhia dos santos; pois, de seguida a numerosas recompensas, desprezou as pompas e, fazendo-se humilde, de príncipe que era, fundou, ornou e dotou este templo”.
Depois de muitos percalços históricos, sobretudo devido ao terremoto de 1755, que devastou Lisboa e a igreja do Carmo, os seus restos mortais repousam, desde 1951, na igreja do Santo Condestável na capital portuguesa.
Nuno Álvares Pereira, santo Condestável, Frei Nuno de Santa Maria –– três nomes, três facetas de um só homem.
Beatificado por Bento XV em janeiro de 1918, será canonizado por Bento XVI em 26 de abril de 2009. Para a Ordem Carmelita, é mais uma estrela que brilhará na constelação dos santos que honram os seus altares.
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